Pão-por-Deus: tradição portuguesa no Dia de Todos os Santos

29 Outubro | 2018 | Goodyear

O Halloween, uma tradição anglo-saxónica, está a ofuscar o português Pão-por-Deus. Mas há tradições que se mantém no Dia de Todos os Santos em terras lusas

Não é preciso procurar muito para encontrar localidades em Portugal onde o tradicional Pão-por-Deus continua a ser uma festa para os mais pequenos, ou não fosse considerado por muitos uma manifestação do “Património Imaterial Português”. Leiria ou Mafra são apenas dois exemplo de locais em que a tradição sobrevive ao passar dos anos. Com a invasão da tradição anglo-saxónica do Halloween, a tradição portuguesa tem sido esquecida por muitos, mas resiste em muitos lugares.

Há algumas décadas, o Halloween era praticamente desconhecido em Portugal. Hoje, há bairros inteiros a mobilizar-se para tornar a noite de 31 de outubro numa festa para miúdos e graúdos. Mascarados a exigir “doçuras ou travessuras”, para descomprimir, provavelmente, do final da primeira fase dos testes na escola.

A primeira vez que tomamos contacto com o fenómeno terá sido, para muitos, com o filme ET – O Extraterrestre que, em 1982, nos mostrou como se passava a noite de 31 de Outubro nos EUA e que, claro, permitiu ao mais querido extraterrestre até à data deslocar-se para tentar contactar os seus conterrâneos e voltar para casa.

Mas por cá há também muito para contar. No Halloween exigem-se, durante a noite, “doçuras ou travessuras” com máscaras a rigor, no Dia de Todos os Santos, pede-se com pequenos versos, e pela manhã “Pão-por-Deus”. Rituais de passagem que assinalam a mudança de estação, e nos dão oportunidade de homenagear os entes queridos que já nos deixaram.

halloween

Nos dias de hoje

O Pão-por-Deus é uma tradição popular celebrada anualmente no Dia de Todos os Santos. Noutros tempos oferecia-se – a crianças e a pobres – pão, bolos, vinho e outros alimentos em memória dos mortos. A acompanhar o peditório, declamavam-se pequenos versos como “Ó tia, dá Pão-por-Deus? Se o não tem Dê-lho Deus!” ou “Pão-por-Deus, Fiel de Deus, Bolinho no saco, Andai com Deus” e os vizinhos davam o que tinham preparado. E ainda hoje é assim em muitas localidades por todo o país. Caso a oferta fosse negada era deixada uma ameaça e o grupo de crianças fugia a rir:

O nome difere de região para região, e a tradição tem em cada lugar as suas particularidades. mas o espírito subjacente é o mesmo. Pão-por-Deus na zona saloia de Lisboa, Dia dos Bolinhos ou Dia do Bolinho na zona centro e na estremadura. Em algumas regiões, os padrinhos oferecem o bolo Santoro. Na Galiza, uma tradição semelhante mantém-se igualmente, por lá chama-se Migalho.

A 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos, feriado em Portugal, as famílias deslocam-se aos cemitérios para limpar e renovar as campas dos entes queridos. Orquídeas, gipsófilas, fetos reais ou crisântemos vão, durante alguns dias alegrar o espaço em que repousam os nossos antepassados. São também acesas velas vermelhas e o tempo é de reflexão. Do outro lado do Oceano, no México, é época de celebrar o Dia dos Mortos e de cobrir, igualmente as campas de flores.

Entretanto, pelas ruas de locais como Arrabal, em Leiria, ou Igreja Nova, no Concelho de Mafra, as crianças andam, pela manhã, de porta em porta com saquinhos de pão, em pano, a pedir pão-por-Deus. A tradição tem ligeiras nuances de lugar para lugar. Mas o que é certo é que portas das casas se abrem e as crianças são recompensadas. No Arrabal, recebem pão, bolinhos de frutos secos e erva doce ou castanhas. Por vezes “tostõezinhos” (moedas). Na Igreja Nova a ementa é distinta: tremoços, broas, pacotes de batatas fritas, pipocas e nozes. Comum, e reflexo da passagem dos tempos, rebuçados, chocolates e outras guloseimas.

Noutras zonas as ofertas incluem bolinhos típicos especialmente confecionados para este dia, à base de farinha e erva doce com mel – batata-doce e abóbora e frutos secos como passas e nozes. As oferendas podem incluir pão, broas, bolos, romãs e frutos secos, nozes, tremoços amêndoas ou castanhas.

Como surgiu o Dia de Todos os Santos

O Dia de Todos os Santos tem origem no tempo dos celtas, um povo que passou por Portugal, e que celebrava o arranque do Inverno (Samhain) para apaziguar os poderes do outro mundo, recordar os antepassados, e pedir abundância nas colheitas futuras. Para o efeito acendiam uma fogueira para amenizar a escuridão dos dias mais curtos e comendo e bebendo em grandes quantidades. Também os romanos celebravam nesta época com grandes festas, comida e diversão.

Estará nestas tradições, a origem das atuais velas vermelhas nas campas e da nossa passagem de ano? Oficialmente, o Dia de Todos os Santos foi criado pelo Papa Gregório IV.

Na primeira metade do século XX, as crianças quando iam pedir o Pão-por-Deus, acompanhadas por um adulto, levavam uma Coca (uma abóbora com olhos e boca recortados) iluminada. Há registos do Pão-por-Deus em Coimbra – ao cair da noite – em que as crianças iam acompanhadas da abóbora oca e um coto de vela aceso no interior. Mas também em Barqueiros (concelho de Mesão Frio), na freguesia de Monsarros (Anadia), em Roriz ou nos Açores.

E muitas outras histórias há por contar. A entrada da Wikipédia sobre o tema é bastante completa e repleta de referências bibliográficas. Recomendamos a leitura.

De assinalar ainda que, o terramoto de 1755 aconteceu a 1 de Novembro, e que as velas acesas terão contribuído para tornar mais grave o que por si já era muito grave (o terramoto e o maremoto). Nos dias que se seguiram as pessoas pediram “Pão-por-Deus” nas localidades não afetadas. Também estas pessoas são relembradas neste dia.

Porque deve ser Património Imaterial português?

Multiplicam-se na Internet, pedidos para que o “Pão-por-Deus” se torne Património Imaterial português, à semelhança do Cante Alentejano ou do Fado. Este trabalho escolar é reflexo disso mesmo. Não obstante escrito por crianças, reflete uma pesquisa aprofundada e transparece a importância que a celebração tem no país, em particular em zonas rurais e saloias.

Um formulário da Direção Geral do Património Cultural pode ser preenchido para levar a bom porto esta intenção:

A progressiva implantação do Halloween em Portugal constitui um exemplo de ameaça ou risco à continuidade do “Pão-por-Deus” como manifestação do Património Imaterial português, por várias razões.

Em primeiro lugar, substitui os versos tradicionais, manifestações da tradição oral da comunidade, por expressões orais originárias do Inglês (“Doçura ou travessura!” / “Trick or treat!”).

Em segundo lugar, introduz neste peditório cerimonial infantil o uso de máscaras e fatos muito semelhantes às usadas no Carnaval, mas que tradicionalmente eram totalmente ausentes do “Pão-por-Deus”.

Finalmente, e como bem expressam as alterações do nome da tradição, da forma e conteúdo da tradição oral, e também o tipo de máscaras que passaram a ser utilizadas pelas crianças, a introdução do “Halloween” eliminou por completo as conotações religiosas muito presentes na antiga tradição do “Pão-por-Deus”.

É caso para questionar, será que o “Pão-por-Deus” é assim tão diferente do Halloween? Porque não celebrar a nossa tradição? Afinal deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer. E, mais que não seja, as crianças devem ir para a cama cedo.

Good Year Kilometros que cuentan